Eduardo Ritter
Do imaginário ao real: um percurso improvável
Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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No dia 2 de agosto de 1990 eu tinha oito anos e estava na casa das minhas tias em Cruz Alta quando o plantão de notícias da Globo anunciou: iniciava a Guerra do Golfo. Na minha cabeça infantil, que não fazia ideia onde ficava o Golfo Pérsico, a guerra ia atingir Cruz Alta. Arregalei os olhos e meu irmão, um pouco mais velho, me olhou e disse:
- Daqui a pouco começam a cair as bombas.
Me caguei. Não literalmente, mas imageticamente. Fiquei esperando os sons dos tiros e das bombas, mas nada. Minha tia Narinha, que ainda vive em Cruz Alta, desligou a TV e disse:
- Vamos no mercado, gurizada?
Como assim? No mercado? E se uma bomba cair na minha cabeça? Não argumentei, afinal, ela era uma adulta, sabia o que estava fazendo. Saímos de casa e a vida transcorria normalmente na terra do Erico Verissimo. Fiquei olhando para os lados, esperando ver algum soldado, enquanto mantinha os ouvidos atentos esperando o som dos tiros. Mas nada. Nadica de nada. Ué, estaria a TV enganada? Cadê a guerra? Cadê aquela guerra que estava na minha cabeça, na minha imaginação?
Eis o ponto: na verdade, sob o ponto de vista da realidade, ela existia apenas no Golfo. Mas, de fato, ela também existia na imaginação de uma criança de oito anos e de milhões de pessoas que acompanhavam o conflito ao redor do globo através dos noticiários. Os adultos sabiam discernir a distância entre o Golfo e o lugar onde estavam. Uma criança de oito anos, não. Mas mesmo quem fazia tal ponderação geográfica imaginava os conflitos, o som dos tiros e bombas, as mortes e o desespero. Pois isso é a vida: pura imaginação. Imaginamos o tempo inteiro. Quando vamos a uma reunião de trabalho, imaginamos antes como ela vai ser. Quando projetamos as próximas férias, antevemos em imagens que ainda não existem uma viagem que ainda não aconteceu - e que nunca existirão tal qual na nossa cabeça. E quando estamos apaixonados e vamos encontrar aquela pessoa que faz o nosso coração disparar, antegozamos momentos maravilhosos que ainda estão por vir e que, mesmo quando chegam, não são exatamente do jeito que sonhamos - pode haver variações para mais ou para menos.
O mesmo ocorre com as lembranças. Indícios do que aconteceu tomam conta da nossa imaginação quando narramos fatos passados. A minha lembrança da cena do início da guerra do Golfo não é 100% real, pois são imagens e diálogos que ocorreram com alguma margem de erro. Talvez, ao invés de ter dito "daqui a pouco começam a cair as bombas", meu irmão tenha falado "espera só até a primeira bomba cair e o chão tremer". Vai saber? Tudo é imaginário. Afinal, como diria o professor Juremir Machado da Silva no livro Tecnologias do imaginário: "Num sentido mais convencional, o imaginário opõe-se ao real, na medida em que, pela imaginação, representa esse real, distorcendo-o, idealizando-o, formatando-o simbolicamente" (p.9).
Assim, aquele beijo que lembramos como o melhor das nossas vidas foi bom, mas não exatamente como imaginamos. Bem como o próximo amor que surgir vai ser bom, mas diferente do que sonhamos cada vez que vemos ela passar - seja diante de nossos olhos ou na nossa timeline. Tudo é imaginário porque tudo é vida. E a vida é imaginária.
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